
O espetáculo
Em cena, um homem e uma mulher. Ele é de periferia; ela, do interior de São Paulo. Ambos estão imbuídos do ofício de narrar as trajetórias das personagens, ele de Raskólnikov, ela de Sônia. E seguem assim, sempre com o público. Entre as trajetórias, as resenhas escritas pelos detentos são lidas. Para se aproximarem de Sônia e Raskólnikov, os narradores fazem paralelos com outras memórias e histórias, próprias, ouvidas e inventadas, e por vezes se apropriam de textos do romance. E assim caminha a peça, como duas linhas paralelas que, enfim, se cruzam no primeiro encontro entre os dois personagens, no ponto em que dois universos socialmente distintos e apartados, coabitam; lembrando que nunca perdemos de vista o exercício dialógico que entrelaça narrador e personagem em seus reais contextos sociais. Assim, os dois voltam a narrar a trajetória rumo ao seu desenlace, porém juntos, e agora com essa outra vivência incorporada ao modo de olhar a história. Até que seguem para o final.
O espetáculo se inspira em trabalhos performáticos com um conceito de encenação muito próximo das artes plásticas.
Uma aliança entre o mais tradicional romance da história da literatura, com conceitos, por vezes esquecidos, porém fundadores do ofício “ser ator”, e o compromisso artístico-político que nos impele a investigar maneiras de se conectar com o outro, em tempos de alarmante intolerância.
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Foto do filme Um condenado a morte que escapou de Robert Bresson
RASKÓLNIKOV, CAPÍTULO 11, VERSÍCULO 1 a 45
“Pensemos no rapaz de Crime e castigo de Dostoiévski – cuja experiência envolve e oprime o leitor, é sentida, provada e suportada por ele; e quem quer que tenha lido o livro passou a ser realmente Raskolnikov, e sabe exatamente o que era ser aquele moço. O drama ali é empurrado para o teatro de uma mente; a peça prossegue com a leitura do livro, acompanhando os olhos que o lêem.” ( Percy Lubbock)
Ao partir de “Crime e Castigo”, através da força da narrativa de Dostoiévski, o espetáculo é uma tentativa de encontro entre diferentes mundos. Dois personagens do romance (Raskólnikov e Sônia) e uma notícia conduzem a proposta dramatúrgica.
Raskólnikov, jovem que largou seus estudos, vive à beira da miséria e é angustiado pela sombra de realizar algo importante. Ainda que de consciência perturbada, planeja e concretiza a morte de uma velha agiota. Ninguém descobre o assassino. Solitário, ele não suporta a tormenta de seus pensamentos, e assim acompanhamos suas assíduas crises de consciência.
Sônia, filha de um amigo seu, é levada a prostituir-se para evitar que as crianças de sua madrasta morram de fome. Quando os dois se encontram, ele pede a Sônia que leia a passagem bíblica sobre a ressurreição de Lázaro (Jo, 11:1-45) e sua leitura lhe revela algo de muito íntimo. No impulso de concretizar o laço entre os dois, Raskólnikov é tomado pela necessidade de confessar seu crime à Sônia. O desnudamento das crenças e contradições de Raskólnikov se dão, enfim, diante daquela que já lhe havia confiado suas convicções mais íntimas.

“Ele sempre lhe segurava a mão com um quê de aversão, sempre a recebia como quem está agastado e às vezes calava obstinadamente durante toda a visita dela. Acontecia de ela tremer diante dele e ir embora em profunda aflição. Mas agora suas mãos não se separavam; ele a olhou de passagem e rápido, não disse nada e baixou a vista para o chão (...) e para ela já não havia dúvida, que ele a amava... “
(Crime e Castigo, tradução de Paulo Bezerra)
Conheço Rodion Raskólnikov há um ano e meio: sombrio, melancólico, soberbo e orgulhoso, nos últimos tempos (ou, sabe-se-lá, desde muito antes), desconfiado e hipocondríaco. Contudo, magnânimo e bondoso. Não gosta de manifestar os seus sentimentos, e antes faria uma maldade do que expressaria seu íntimo com palavras. Às vezes, não está nada hipocondríaco, aliás, mas simplesmente frio e insensível até a crueldade, palavra de honra: como se dois caracteres opostos se revezassem nele. {...}
Não escuta até o fim o que estão dizendo. Jamais se interessa pela mesma coisa que todo mundo, em dado momento. Atribui a si próprio um valor imenso e, parece, com certo direito.
Trecho de Crime e Castigo (tradução de Paulo Bezerra)
Andrei Tarkovsky - referência
“Crime e Castigo” foi publicado em 1866, e atualmente é um dos livros mais lidos pelos detentos do Sistema Penitenciário Federal no Brasil.
Ao apresentarem uma resenha do livro, são recompensados com quatro dias a menos na pena.
